quinta-feira, 14 de novembro de 2013

As promessas de um troféu gospel

É noite em Jerusalém e a plateia aguarda com expectativa do lado de fora do átrio: “E o Troféu Ebenezer de Melhor Salmista vai para... [que rufem os adufes] Jedutum!” Os filhos de Hamã aplaudem, e em coro saúdam com a típica manifestação mosaica: “Ele merece! Ele merece!” Mas, no fundo, esperavam sair com o prêmio nas mãos. Agora, até as raposas sem covil sabem que rolos e rolos de pergaminho com as letras de Jedutum vão ser vendidos com a inscrição de “melhor cantor do ano”.

3 ou 4 mil anos depois...


O Troféu Promessas se define como um “evento com apoio da Rede Globo e um instrumento para honrar a vida daqueles que se dedicam à música gospel”. É o que diz no site da premiação. Talvez fosse suficiente dizer que se trata de um evento dedicado a premiar os cantores gospel, mas é preciso celebrar tanto a inédita parceria com a mídia dominante como também justificar a competição com tonalidades nobres. Fico pensando que se quisessem honrar a vida do cristão não bastaria escolher um veterano da música cristã e lhe entregar um prêmio.

Os idealizadores da Troféu Promessas também criaram uma categoria onde se lista vários nomes que receberam votos via Facebook. O título singelo é: “Pra Curtir”. Imagino o cantor sério, que está no gospel pela missão e não pela moda, que visa anunciar o evangelho e confortar as pessoas com sua música, e aí vê seu trabalho resumido a um “pra curtir”!

O mundo gospel fez pouco esforço para escapar da lógica pop que move a indústria fonográfica. Embora os cantores se denominem ministros e não artistas, embora o público diga que as canções de tal ministro sejam cheias de “unção”, embora todos afirmem que a música é um modo de levar a “mensagem da salvação”, a promoção de um troféu para os melhores faz entrar em cena a roda-viva das contradições:

- as igrejas advertem contra a era de consumismo, mas suas gravadoras precisam vender seus produtos num contexto de alta concorrência comercial e religiosa;

- a igreja lança uma anátema contra o estrelismo, mas a indústria gospel reproduz mecanismos de transformação de “ministros” em celebridades e de fiéis em fãs;

- a igreja busca motivar o exercício da missão, e o mundo gospel cria uma competição para premiar os que melhor cantaram essa missão;

- a igreja abre a Bíblia para dizer que todos são igualmente falhos e carentes da graça divina, o Troféu Promessas pede para que você escolha “o melhor”.


O Troféu Promessas não é como uma competição escolar, em que o objetivo é premiar os méritos de um estudante dedicado aos estudos; nem é como uma gincana juvenil que serve para socializar e entreter. Trata-se de uma premiação de claro viés mercantil e promocional capaz de constranger cantores cristãos nada interessados em competição midiática.

Comércio e promoção não são intrinsecamente maus. Mas o conluio de estratégias da indústria pop com o ministério musical cristão que o Troféu Promessas parece representar nos mostra o beco pop em que o gospel foi parar.

A controvérsia se instala de vez quando uma instituição religiosa pede votos para os cantores que são adeptos da sua igreja. Para alguns, essa seria uma estratégia providencial de divulgação da igreja; para outros, isso soa como lobby corporativista. Não seria injusto perguntar: é para votar no melhor cantor ou na melhor doutrina?

Essa é uma época em que os modos de transmissão da mensagem religiosa aparentam maior ambiguidade, já que a votação corporativista tanto divulga a missão da igreja quanto pode aumentar as vendas dos bens musicais. Talvez isso ocorra porque alguns têm entendido que o lucro financeiro é pequeno (e quase sempre é mesmo) perto do saldo evangelístico.

Muitos cantores cristãos são discretos em relação ao troféu. Mas os executivos das gravadoras vivem do retorno de seus investimentos e precisam incrementar a receita da empresa.

Por isso, há gravadoras que participam do “evento parceiro da Rede Globo e que honra a vida de quem se dedica ao gospel” e também que aproveitam a premiação para relançar o CD vencedor, agora com a desinteressada tarja de “Melhor CD no Troféu Promessas”. Alguns sites de venda de produtos gospel utilizam a mesma estratégia para alavancar as vendas, e aí estamos de volta à ciranda das contradições.

Agora, algumas perguntas sem nenhum juízo de ouvintes, cantores ou denominações:

Que espécie de visibilidade midiática e evangélica gera uma premiação dos “melhores” da música cristã?

É eticamente incorreto usar a premiação para divulgar a igreja?

Os grupos de fãs que fazem campanhas pelo seu cantor preferido estão agindo certo?

E os músicos cristãos? Tem se posicionado contra a adesão às estratégias de publicidade e mercantilização do evangelho musical?

Se não há um troféu nacional para o melhor evangelista ou ministro do evangelho, e se os cantores são considerados evangelistas, não haveria uma contradição na existência de um prêmio para os "levitas da música"?

Seria porque as gravadoras não têm gerenciado a música cristã como se fosse uma área de ação ministerial dos pregadores, mas como um campo da ação empresarial de artistas do pop?

Extraído do Nota na Pauta

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